“Bem vindos, cavalheiros! As damas que tem dedinhos dos pés livres de calos vão dançar com os senhores.
–Ah minhas senhoras! Qual de vós irá agora negar-se a dar uma volta pelo salão? Aquela que fizer cú doce, dela direi que tem calos.”
Toda noite que ELE dizia este trecho do texto de Shakespeare, ela se arrepiava e passando as mãos em seu ante-braço confirmava o eriçar dos pelos. Se controlava para não levantar da poltrona e dizer em alto e bom som que ela não tinha calo nos dedos, pois era super atenciosa com os pés e cuidava deles desde criancinha. Perdida em seus devaneios mais sinceros somente volta a si quando a platéia aplaudia fervorosamente o fim trágico da peça dos dois jovens apaixonados de Verona.
As luzes acendiam e logo uma movimentação estranha de pessoas iam ao camarim pegar autógrafos com os atores. Ela também queria. Queria ir dizer todas as falas do personagem que ELE interpretava, mas lembrava-se em seguida que tinha que voltar para seu quarto-casa. O último ônibus passaria dentro de alguns instantes.
Amanhecera o dia, Ele em sua casa com um leve amargo na boca, típico de quem toma umas “talangadas de álcool” na noite anterior. Deveras, pois fizera sucesso e os amigos o levaram para beber. Lavou o rosto, e mirando-se no espelho viu dentro de seus olhos sua imagem refletida, sorriu e com uma voz preguiçosa disse “bom dia meu caro”, o telefone tocou…
Na baixada da cidade subindo o mercado municipal o dia já começara em um destes botecos repletos de bêbados amanhecidos e putas encharcadas de maquiagem. Nota-se que estes recintos quase não fecham suas portas devido a alta rotatividade de clientes. Ela, ali no seu nicho sorria e narrava aos ouvintes atentos as falas da peça que assistira na noite anterior. Era um alvoroço só. Enquanto suas amigas comentavam dos capítulos das novelas, comum entre as demais, ela se inflava e sorria trôpega diante do olhares atentos dos seus. Logo sentia-se a primeira dama do puteiro. E era.
Um vendedor ambulante de relógio, destes que andam no centro de cidades, escutava ávido à conversa. Colocou a mão na carteira e nada. O que tinha era para o almoço. Não titubeou, pegou um relógio e ofereceu à primeira dama do puteiro. Seu rosto ficou vermelho. Mesmo com aquele excesso de maquilagem notava-se. Aceitou. As amigas riam enciumadas. Ela colocando o relógio no pulso esquerdo, o que arrepiava, olhou de esguio para o vendedor, sorriu e perguntou se o tal gostaria de ter seu autógrafo. Foram para o seu quarto-casa.
No fim da tarde fora se certificar das horas, o relógio não estava funcionando, riu e dormiu.
Fausto Ribeiro
Ator de Teatro e integrante do Grupo Engasga Gato.